domingo, 2 de junho de 2013

Impressões de um Raconteur (ébrio)



Estou tentando escrever ébrio.
Isso é fato. Abrir a página, teclar. Que aventura louca, não? Não sei mais o que penso, só sei que faço. Por que faço? Não sei. Quem sou? Não sei também. Só sei que escrevo ébrio.
Era uma vez, há muito tempo, um conto há muito perdido e escrito por um escritor ébrio; contava a história de um rapazote que se perdia nas maledicências do coração feminino. Talvez a achasse bela. Talvez não a achasse. E daí? Ele só desejava uma história de amor. Mas seria isso justo? Amar por amar. Ora, estou indagando muito. O fato é que esse rapazote talvez a amasse, talvez não.  Mas o palpitar do coração, o calorzinho no peito, aquela vontade louca de tê-la sem motivo algum imperavam na vida do rapazote, do momento da aurora até as profundezas noturnas. Ela a olhava de jeito estranho também. Talvez o amasse... Não, sem mais indagações e dúvidas. O mundo não terida de ser regrado? Ah! Não consigo fazer isso! A dúvida é nossa rainha! Mas também dividia esse posto com aquela mulher. Eis que o rapazote decidiu amá-la! Amaria? Eis que o rapazote decidiu não amá-la; esperar mulher outra que há tempos não vinha! Não a amaria? Seria isso justo? E se seu coração nunca mais florescesse? Amar parecia uma lei. “A amarei!”, dizia ele ébrio, olhando a lua. “Não a amarei!”, dizia ele depois. Eis então que a primavera acabou, e veio o inverno. A noite é fria, e os corações são ternos, mas este teve-não-teve tempo. Instalou-se o frio e findou-se a história. Agora devo pará-la antes que a estrague na minha ebriedade.
Os olhos realmente se abrem nesse estado, hein!

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Ana, a luz e o tempo.

Ainda na época do segundo imperador, havia uma cidadezinhazinha no interior da Bahia onde as pessoas sempre estavam alegres. Não que as pessoas sempre sorrissem, não tivessem problemas ou preocupações; na cidade havia tanto espaço para o choro, o desespero e a infelicidade quanto para o riso, a alegria e a prosperidade. O fato era que, no geral, as pessoas lá viviam felizes mesmo com suas mazelas, e se queixavam pouco. Nunca havia aquele silêncio sepulcral que há em muitas cidades parecidas, em épocas de seca ou de calamidades; nunca as casas tinham um aspecto velho e rançoso - por mais velho e rançoso que fossem- , e até as crianças mais pobres brincavam e divertiam-se com as crianças do barão - salvo em períodos verdadeiramente escassos. O motivo disso? Qualquer viajante incauto poderia perguntar a um morador e este lhe responderia prontamente: "Ana". Em determinada casinha azul daquele lugarejo, numa das poucas ruas daquela semi-vila, vivia uma mulher chamada Ana. Mas Ana o quê? Ana Maria, Ana Luísa, Ana Cristina? São tantas as Anas do Brasil, como saber? Além disso, faz mais de cem anos! Nem mesmo sua lápide pôde resistir ao tempo, de tal modo que ali atualmente está apenas escrito "Ana". Portanto, chamá-la-emos assim.
Essa Ana, que vivia numa casinha azul de uma das poucas ruas daquela semi-vila, já era velha na época do relatado. Tinha o hábito mais do que religioso de postar-se na janela de sua casa à primeira luz da aurora, com o antebraço esquerdo e o cotovelo direito apoiados no parapeito e o com o pulso direito sustentando a cabeça. E assim ficava da primeira luz ao ocaso; sempre ali, observando a rua, as crianças, os trabalhos e os dias. Apenas saía de seu local quando a natureza do corpo, ou a missa, a chamavam. Mas o que mais a marcava era o sorriso: era um sorriso pleno, completo, cheio de dentes brancos e conservados (apesar da idade). Era esse sorriso que luzia para toda aquela cidadela, que a fazia prosperar alegremente; era a visão dessa mulher contente que acalentava os trabalhadores exaustos e os tirava de seus problemas e preocupações; era isso que fazia as outras mulheres sentirem-se contentes por estarem vivas, que dava mais vontade às crianças para brincar, que dava luz à cidade. Até mesmo os animais eram tragados pela força daquela boca perfeitamente aberta, que luzia como uma moeda de ouro em meio ao ferro escuro. O seu sorriso era magia, era vida.
Mesmo fazendo esse bem todo, as pessoas ainda faziam comentários escusos sobre ela. "Como ela ainda pode sorrir depois disso?" ou então "Ana é uma santa, como pôde sobreviver com uma dor daquelas por tanto tempo e ainda ter forças para ser a nossa alegria?" eram comentários muitos comuns na privacidade das alcovas daquela pequena cidade. Para entender então esse hábito de ana, que perdura desde um certo acontecimento em sua vida, é preciso que voltemos mais ainda no tempo - quarenta anos. Ana ainda era viçosa naquela época; os contornos do seu corpo não poderiam ser os mais atraentes, mas não podia se dizer que era feia. Ainda assim tinha um sorriso encantador e conservado - coisa rara naquela época, naquele lugar e para a idade que ela tinha. É claro, tinha um marido; um homem de hábitos rudes e de pouco romantismo. Ele era gordo, mas também não era feio, apesar de sempre aparentar estar bêbado. Foi um desses casamentos arranjados, onde o pai de Ana, ansioso por livrar-se da filha, casara-a com este homem, que tinha uma pequena propriedade; o que fazia dele o partido mais bem-cotado da região. Logo após o primeiros anos de casados, não se podia dizer que ela era trsite em seu casamento, mas também estava longe de ser feliz. Apesar de nunca a ter amado, apesar de andar sempre às voltas com uma garrafa de pinga, apesar de sempre ter falado mal da esposa, apesar de apenas a procurar à noite para satisfazer-se (nunca por paixão), havia duas coisas das quais ele podia-se orgulhar: nunca erguera a mão contra sua mulher e nunca a traíra. Era isso e a doçura de Ana que mantinham os laços matrimoniais. Mas um dia, tudo isso mudou. Imprevistos sempre aconteciam na propriedade que o marido administrava, de tal maneira que algumas vezes ele varava a noite acordado e só retornava de dia para dormir um sono pesado e preocupado. O problema de verdade foi quando esses imprevistos passaram a acontecer mensalmente, depois semanalmente. Ao fim de alguns meses, Ana já se acostumara a acordar sozinha todos os dias. Aquilo a irritava, a deixava mais e mais furiosa; mas ela não externava nada disso.
Em frente à casa de Ana existia uma casa velha, sempre fechada, na qual até o ano anterior um senhor ilustre da região morava; todavia ele falecera, e, para manter sua memória viva, seus netos que residiam na capital enviavam todo mês uma remessa de dinheiro a um caseiro para que este cuidasse da casa, limpasse a mobília e não deixasse que os ratos proliferassem. Um dia, quando a noite já havia há muito atirado seu pesado e frio manto sobre aquelas terras e uma mulher lamentava sozinha em sua cama a ausência do marido, Ana, acometida por uma espécie de impressão súbita, abriu a janela e gemeu de medo e raiva; através das frestas da janela e da porta de madeira podia-se perceber que havia luz na casa da frente. Imediatamente uma ânsia lhe subiu pelo corpo; ela precisava ter certeza. Estava glacial lá fora, mas isso não a impediu de sair de camisola; perdeu o medo do frio, perdeu o medo da vergonha de ser encontrada numa madrugada de abril - já sexta-feira santa - semi-nua no meio da rua. Quando nossos corações estão exaltados nós perdemos a noção de mundo, tornamo-nos seres unifocais. Medindo cada passo, contando cada respiração que escoava por suas narinas, Ana caminhou até a porta em frente, e com um leve empurrão constatou que ela não estava trancada. A casa era pequena, e com pouca mobília. Tinha apenas três cômodos: o primeiro, uma espécie de sala cuja porta Ana guardava; um cômodo mais ao fundo, provavelmente a cozinha; e um cômodo à direita de Ana, de onde vinha a única luz da casa - provavelmente de vela. Desse quarto se ouiviam gemidos de homem e mulher, e o ranger de uma antiga cama. Sobre a mesa, na sala de entrada, estavam atulhados ali as roupas com que o marido saíra aquela manhã para trabalhar e um vestido branco de tecido grosseiro, tão velho e tão usado que mais parecia cinza. As vestimentas estavam tão enroladas umas nas outras que chegaram a causar embrulhos no estômago de Ana. Então ela viu tudo o que precisava: dentro da bainha, o facão do marido repousava ao lado das roupas. Com o coração na boca, hesitante a cada minuto, na ponta dos pés e com medo do barulho dos seus passos, Ana caminhou até a mesa evitando olhar para dentro do quarto quando passou pela sua entrada. Esse pequeno movimento fizera com que verdadeiros grotões de suor se formassem em todo o seu corpo. Ela então deslizou a lâmina para fora do couro, ao mesmo tempo que os gemidos no quarto tornavam-se mais intensos; quase urros bestiais. Ana então mergulhou  em seus pensamentos naquele derradeiro momento: podia pôr a lâmina no mesmo lugar e voltar para casa em silêncio, e ignorar aquilo tudo. Mas ela não era mulher de ser traída. Pouco a pouco pôs a cabeça para dentro do quarto, e depois de ver a cena, seu corpo mecanicamente foi introduzido no cômodo. Seu marido estava na cama em um êxtase tal que sequer a percebeu entrar. Possuía uma escrava, a concubina preferida do barão, que até hoje não se sabe como ele conseguiu seduzir. Seu contentamento ali era tamanho que nem mesmo notou quando sua mulher se aproximou, guiada por uma fúria cega, ergueu o facão sem a menor hesitação ou raciocínio, e o apunhalou pelas costas, no coração. Só aí percebeuno momento em que foi acometido pela dor, e caiu sem forças sobre a escrava. A concubina, presa sobre o corpo "morrente" do homem, só teve a oportunidade de gritar e se debater em desespero. Mais algumas punhaladas e os dois jaziam sem vida, na cama, com um facão atravessando os coração dos dois. Não foi preciso mais de alguns segundos para Ana recuperar a consciência. A primeira coisa que fez foi lavar as mãos sujas de sangue numa bacia ali perto; nenhuma outra parte de seu corpo se maculara. Depois voltou para casa e então, na solidão, caíra num choro histérico e desinibido.
O dia amanheceu e o acontecimento chocou a todos. A princípio, acusaram o barão; todos sabiam por sua boca que ninguém poderia mexer em suas concubinas sem seu consentimento. Porém, como o barão era poderoso, nem chegou a ser preso: foi imediatamente absolvido por falta de provas. E também, como ninguém queria perturbar uma pobre viúva, o caso foi arquivado. Durante todo o sábado, Ana se trancou em casa. O enterro foi no domingo de páscoa: à escrava, uma vala comum no cemitério de escravos das fazendas do barão; ao homem, um espaçozinho no cemitério da cidade, que por acaso ficava em uma colina. Ana compareceu ao enterro, para o espanto de todos, de vestido azul e sorrindo o tempo inteiro. "Ela enlouqueceu"; "meu Deus! coitada da mulher!"; "perder marido não é fácil!". E desde esse dia, seu sorriso se tornou alegre e encorajador; e ela habituou-se a postar-se na janela todos os dias, igualmente vestida de azul, sol ou chuva, até que a noite caísse. E depois, no escuro do seu quarto, ela entrava em desespero; chorava como na noite do assassinato, com a mesma intensidade, mesmo tendo se passado um ano, dez anos ou quarenta.
 Mas o que importa é o agora; e no momento do atual relato, dentro de menos de um dia, faria exatamente quarenta sexta-feiras santas desde o assassinato. Naquele dia, como em qualquer dia, ela sorriu para todos, foi à missa e comungou como se estivesse livre de seu pecado. Porém no último momento do ocaso, poucos segundos antes de fechar a janela, ela subitamente entendeu tudo: o céu, o sol, as casas, o cemitério da colina, as crianças brincando ao por-do-sol, o horizonte e o que está além do horizonte, o barão e as metáforas da vida. Era delicioso, era nirvana. Ela fechou então sua casa, com a certeza pujante de que aquele era o momento mais marcante de sua vida, e não a noite do assassinato. Estava enfim em paz, uma paz que demorou quarenta anos para chegar. Resolveu então se entregar no dia seguinte às autoridades; confessaria seu crime mesmo sabendo que a prisão a terminaria de matar - fisicamente. Não se importava mais, ela sabia que tinha uma certeza, uma coisa bela que a cada ser humano é dada a chance de descobrir, e ela descobriu. Pela primeira vez desde aquela noite, Ana não chorou ao deitar em sua cama: seu sorriso estava mais reforçado do que nunca. Porém nem sempre o corpo tem o mesmo vigor que a alma, e o tempo de Ana há muito estava próximo do fim. Amanheceu na sexta-feira santa já morta. Foi um choque para os habitantes da região. Enterraram-na no mesmo dia, ao lado do marido, com seu vestido azul; seu cadáver se recusava a parar de sorrir. Foi a semana santa mais triste da terra: durante toda aquela sexta e sábado a cidade entrou em um silêncio ébrio; as pessoas mal ousavam comunicar-se com o olhar. Então, aos primeiros raios de sol do domingo de Páscoa, o coveiro desceu a colina do cemitério, gritando para que todos acordassem e viessem ver. Logo uma multidão de curiosos se formou na porta do cemitério para se espantar: sobre o muro, como que olhando para toda a cidade abaixo, estava em sua posição usual, com o seu sorriso usual, o corpo sem vida de Ana. O coveiro, com a ajuda de alguns homens, sem cerimônia, tirarou o cadáver dali e enterrou-o na sua cova, que se encontrava misteriosamente aberta. Todavia o mesmo fenômeno se repetiu três dias depois; enterraram-na novamente. Porém esse fato estranho não cessou de acontecer; era como se mesmo na morte Ana ainda desejasse brindar a todos com o seu sorriso. Após algum tempo, os cidadãos se acostumaram com o cadáver que sorria, e passaram a não mais enterrá-la quando perceberam seu desejo intenso de sorrir. Ana chegou até mesmo a se tornar atração turística, mas como aquele lugar ficava no meio do nada, logo as pessoas não quiseram mais ir lá só para ver aquilo; e assim os dias de Ana como aberração circense acabaram.
Mas isso foi há mais de cento e quarenta anos! o que aconteceu desde então? A cidade não sobreviveu. As secas, as migrações, o profeta, a guerra, a miséria e a falta de Ana fizeram com que a cidade minguasse, minguasse e fosse esquecida pelas pessoas e pelos mapas. Até mesmo o barão comprou terras em outro lugar e se mudou para planícies mais verdes. No final, nos anos 20, morava ali apenas um fiel coveiro, filho do coveiro que primeiro enterrou Ana; o último habitante do lugarejo morreu em 1923. Com o tempo, várias casas ruíram, vinhas e arbusto cresceram em todos os lugares e tomaram tudo. Atualmente, há apenas a fachada da casa de Ana em pé; mas esta já perdeu a cor azul. O cemitério na colina ainda existe, apesar de seu muro ter caído em vários pontos. Lá, sempre no mesmo lugar, com o seu vestido azul desbotado e quase comido pelas traças, um viajante incauto pode ver um esqueleto em uma posição pitoresca. Apesar de suas carnes e suas peles terem deixado de existir, qualquer um pode perceber que o esqueleto ainda sorri através daquela arcada dentária perfeitamente branca e intacta. E por mais medo que tenhamos de esqueletos e outras coisas funestas, ao nos aproximarmos desse iremos nos sentir felizes e em paz; e por mais que perguntemo-nos o motivo de ele ainda estar ali; por mais que olhemos em suas órbitas vazias, Ana não responderá; limitar-se-há a continuar sorrindo. E se Deus permitir, o esqueleto que sorri continuará assim: como um marco, um memorando, até o fim dos tempo.  

Mas afinal, o que é um raconteur?

Chamai-me Bruno. Como o Ismael de Mellvile, não tenho opção outra senão abrir estas - por assim dizer - páginas em branco e preenchê-las com meu pensamentos. Não que eles ocorram em um completo caos e nascam fazendo um alarde tal que eu tenha a urgência imediata de pô-los no papel, não. Eles são silenciosamente medrados no interior de minha mente como reflexos do mundo exterior, depois nascem cada um à sua maneira; uns quietos, outros estrondosos e berrantes. Seria melhor fazer uma metáfora: comparemos a mente humana a um grande oceano. Existe, acima dele, um sol cujos raios iluminam toda superfície e penetram na água. Abaixo da superfície existe todo um mundo mental; belo, e grotesco; natural e antinatural; estável e instável; enfim, este mundo dual que é a alma humana. Quanto mais fundo mergulhamos, menos se fazem presentes os raios solares, e mais escura e turva se torna a água. Então chegamos a uma fossa, cuja abertura é protegida por um imenso coral. Nessa fossa a apenas um mínimo de luz é permitida a entrada; é nesse lugar de escuridão que nadam os monstros mais terríveis de nossa existência; é esse abismo o lugar de nossas vontades recônditas; é esse fágil coral que defende a fronteira com a insanidade. É justamente nesse coral,  nesse pálido limite que, acariciados pela luz que ali se amontoa, engendram-se sonhos, pesadelos, pensamentos, leituras; todo um universo interno. Formando-se pouco a pouco, essas criaturas se desprendem do coral e nadam para a superfície, mas permanecem a poucos sentímetros da superfície, irresolutas e tristes, esperando um mero espectador que as veja sair do oceano. Enquanto isso, estão fadadas a atormentar a alma à qual pertecem, a perseguir seu próprio criador, a tirar-lhe o sono e atulhar-lhe a cabeça, até que este resolva observar seus saltos magníficos.  
Pois bem, raconteur é uma palavra francesa: significa, de uma maneira aproximada, aquele que sabe contar histórias. Raconteur é isso. Todavia, não posso concordar totalmente com essa definição; tenho de fazer um adendo: todo raconteur é perseguido por suas próprias histórias - geradas pelos reflexos da luz de seu mundo externo - até que se disponha a, como um bom artista, observar o ínfimo e grandioso momento em que a sua criatura salta para a luz, erguendo suas asas para o céu em pleno gozo. É nesse momento que ele tira suas impressões, que ele põe no papel todo aquele que se originou no fundo de sua alma. Essas histórias, essa sina de raconteur, isso também me perturba como uma doença, uma psicose amena. Mas fazer o quê? É a mais bela doença que existe; e este blog, assim como qualquer folha de papel e qualquer caneta, talvez o meu tratamento. Mas a minha doença pode também ser divertimento de outras pessoas, não? Bom apetite!